16 abril 2006

Uma tragicomédia Congressual

Deputado Indeterminado:
Com a palavra o nobre senador Insosso.
Senador Insosso: Muito obrigado, presidente.
Burburinho. Campainha.
Senador Insosso: Senhor presidente, assim não é possível, não tem cabimento.
Campainha (três vezes).
Senador Insosso, para o depoente: O senhor é ou já foi eleitor do Partido dos Sonhadores?
Depoente: Sim, senhor senador.
Senador Insosso: É ou já foi?
Depoente: Eu já fui, senhor senador.
Senador Insosso: Muito bem. O senhor votou quantas vezes nos candidatos do Partido dos Sonhadores?
Depoente: Não posso lhe informar, senhor senador. Sinto muito, infelizmente eu não sei.
Senador Insosso, visivelmente irritado: O senhor tem consciência de que ao contrário dos outros depoentes que passaram por esta comichão o senhor não tem advogado e não está protegido por um habeas-corpus e portanto deve responder a todas as perguntas e está constrangido a dizer a verdade sob pena de sair deste recinto para uma prisão brasileira?
Burburinho. Campainha.
Depoente: Sim senhor senador, tenho consciência disso, eu acho.
Senador Insosso: Então quantas vezes Vossa Senhoria votou nos candidatos do Partido dos Sonhadores?
Depoente: Foram várias vezes, senhor senador. Inúmeras vezes.
Senador Insosso: Inúmeras vezes?
Depoente: Sim senhor, inúmeras.
Burburinho.
Deputado Indeterminado: Com a palavra o nobre deputado Ambas Aspartes.
Deputado Ambas: Obrigado, Excelência. Senhor José, descreva suas relações com o Partido dos Sonhadores.
Depoente: Nunca fui filiado ao Partido dos Sonhadores.
Deputado Ambas: Mas foi militante.
Depoente: Participei de reuniões com militantes. Fui às ruas durante as eleições. Distribui panfletos nos cruzamentos. Sempre acreditei no sonho.
Silêncio.
Deputado Ambas, peremptoriamente: Senhor José, o senhor já esteve em assentamentos do Movimento dos Sem-Terra?
Depoente: Sim senhor, certa vez estive, com colegas...
Senadora Indignada: Pela ordem, senhor presidente, pela ordem!!!
Deputado Indeterminado: Com a palavra, pela ordem, a digníssima senadora Indignada.
Senadora Indignada: Até quando seremos obrigados a conviver com a desfaçatez desta camarilha palaciana...
Repórter com microfone em alto-falante encobrindo a voz da senadora Indignada: Diretamente do Congresso Nacional estamos acompanhando na íntegra mais um depoimento da Comichão Parlamentável Incerta.
Pelo número de parlamentáveis inscritos o depoimento do cidadão José Inocente Útil ainda deve durar mais cerca de doze horas. Quem está falando agora é a senadora Indignada do Partido do Sonho Impossível. Ela acaba de interromper o deputado Ambas Aspartes, do Partido do Bom Patrão e como todos sabem (tentando ser engraçada) a senadora costuma fazer longos discursos...
Âncora, também no alto-falante, tentando parecer interessado: Mas, Poliana, quer dizer que realmente a senadora Indignada interrompeu o deputado Ambas Aspartes? Repórter, em meio a um grande burburinho: Sim, mas agora o que está acontecendo é que os outros deputados e senadores do Partido do Bom Patrão fizeram uma manifestação de repúdio ao deputado Sujeito Indeterminado, que é do Partido Social Burocrata e preside esta CPI. Enquanto isso, (totalmente perdida) os integrantes do Partido dos Sonhadores que ainda permanecem ameaçaram se retirar daqui desta sala do plenário onde se reúne a Comichão Parlamentável Incerta. Mas mesmo assim a senadora Indignada continua fazendo o seu longo discurso, depois de ter interrompido o depoente enquanto o deputado Ambas Aspartes fazia perguntas, vamos ouvir a senadora...
Senadora Indignada: Portanto é por isso que eu dediquei os melhores anos da minha vida a este sonho e não serão vocês que conseguirão me convencer do contrário porque eu sou o sal desta terra e se o sal não salga então ou é porque não pode deter a corrupção ou é porque a corrupção não quer recebê-lo e precisa ser detida...
Burburinho. Campainha.
Deputado Indeterminado: Com a palavra o deputado Deletério.
Deputado Deletério: Senhor José Inútil... Inocente Inútil...
Deputado Indeterminado: É Inocente Útil, deputado.
Deputado Deletério, com certa insegurança: Senhor José Inocente, diga o seu nome completo, por favor.
Depoente: O senhor já disse o meu nome, deputado.
Deputado Deletério: Mas realmente é um desrespeito mesmo, senhor Inútil. O senhor não pensa na honra de sua família e de sua cidade? Vou lhe dizer, para que o senhor saiba, senhor Inútil, que eu na minha cidade sou muito conhecido e respeitado. Em minha empresa, senhor Inútil, eu tenho não sei quantos mil empregados. Não sei quantos mil empregados! O senhor está me ouvindo? E todos eles, senhor Inútil, todos os meus não sei quantos mil empregados votaram em mim e neste exato momento estão todos acompanhando a minha atuação aqui nesta Comichão Parlamentável Incerta, que por sinal tem sido tão bem conduzida pelo meu conterrâneo e companheiro de partido, meu grande amigo, o nobre deputado Sujeito, que tanto fez por mim e pelos meus não sei quantos mil empregados e por todo o meu eleitorado. Portanto eu lhe pergunto, senhor Inútil, em nome da Nação, o senhor já fumou maconha?
Depoente: Com todo o respeito que lhe devo, que é muito, senhor deputado Deletério, eu me reservo o direito de permanecer calado sobre esse assunto, nobre senhor deputado.
Burburinho. Campainha. Burburinho.
Deputado Deletério: Mas o senhor não tem dinheiro para pagar advogados, senhor Inútil, o senhor não tem habeas-corpus, o senhor é obrigado a responder à minha pergunta.
Deputada Meritíssima: Pela ordem, senhor presidente. O cidadão tem o direito de permanecer calado.
Deputado Deletério: Senhor José Inocente, o senhor alguma vez já esteve pessoalmente com Vossa Excelência o Excelentíssimo Presidente Nulo?
Murmúrio de espanto.
Depoente: Nunca estive, senhor deputado.
Deputado Deletério: O senhor afirma que nunca o viu pessoalmente?
Depoente: Quer dizer, eu o vi pessoalmente, mas estava longe, no meio da multidão...
Deputado Deletério: O senhor afirma que o presidente Nulo estava no meio da multidão? Depoente: Não senhor, eu estava no meio da multidão, ele estava sobre um palanque e ainda não era presidente.
Deputado Deletério, depois de observar o depoente por alguns instantes: Já esteve alguma vez pessoalmente na sede do Partido dos Sonhadores?
Depoente: Não posso falar, senhor deputado.
Deputado Deletério: Por que não? Não se lembra?
Depoente: Não porque não me lembre, senhor deputado, mas porque isso tudo é demais para a minha cabeça.
José Ninguém, julho de 2005

Um comentário:

Anônimo disse...
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